No começo de 1960, Walter Hugo de Andrade Cunha se viu em um momento difícil de seu doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP): estava desmotivado e perdido. O tema lhe parecia complexo e vasto demais: o lugar da vontade, como concebida pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). Ele fugia temporariamente do labirinto filosófico contemplando o comportamento das formigas-loucas (Nylanderia fulva), assim chamadas por causa de seus movimentos rápidos e imprevisíveis, no quintal de sua casa, na cidade de São Paulo. Um dia, resolveu observar com mais atenção a polvorosa das formigas ao encontrarem uma de suas companheiras esmagada. “Foi como quem ateia fogo a um rastilho de pólvora, pois não consegui mais frear-me daí para a frente”, escreveria ele 30 anos depois.
Algumas formigas voltavam para o ninho, trêmulas e desorientadas, e outras “reduziam a marcha nas proximidades do ponto de esmagamento e, em seguida, deixando a trilha por um momento, desviavam-se, geralmente também trêmulas e em marcha ondulante, contornando, apressadas, a região alterada”, relatou no livro A emoção no compenetrado cortejo: A trilha de formigas como um caminho para descobertas na psicologia e na etologia, editado em 2020 pela Sociedade Brasileira de Psicologia também em inglês. Para ele, o comportamento desordenado das formigas era uma reação emocional propiciada pela memória individual, a seu ver um mecanismo primitivo útil para um organismo prever e preparar ações de sobrevivência.
Ao ceder ao ímpeto de compreender as reações desses insetos, Cunha entrava na trilha da etologia – o estudo do comportamento animal –, que havia germinado na Europa na década de 1930. Nascido em Santa Vitória, oeste de Minas Gerais, em 1929, ele se tornou um dos principais responsáveis pela definição de abordagens conceituais e dos métodos de trabalho dessa área no Brasil. Seu artigo clássico “Convite-justificativa para o estudo naturalístico do comportamento animal”, publicado pela primeira vez em 1965, consta do livro Lições da alameda Glete: Coletânea de textos de Walter Hugo Cunha, pioneiro da etologia no Brasil (IP-USP, 2013). Professor emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Cunha faleceu em agosto de 2022, aos 93 anos.
“Ele procurou entender como a seleção natural estabelece padrões de comportamento e quais os fatores críticos que determinam o comportamento adaptativo dos animais”, afirma o neurobiólogo Gilberto Fernando Xavier, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). No primeiro ano de graduação, em 1975, interessado em saber como as redes de neurônios poderiam construir a memória, o futuro biólogo conheceu Cunha: “Ele foi muito acolhedor e determinante para que eu encontrasse minha trilha de pesquisa, indicando o laboratório de psicobiologia da Escola Paulista de Medicina [atual Universidade Federal de São Paulo]”.
Xavier ressalta que Cunha formou pesquisadores e contribuiu para a construção do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto do Psicologia da USP. Sob orientação dele, César Ades (1943–2012) se tornaria professor do IP e um dos expoentes da etologia no Brasil. Ades estudou o comportamento de aranhas, macacos e outros animais.
Ainda criança, Cunha se mudou com a família para a cidade de São Paulo. Inconformista, detestava as escolas – e passou por várias até completar sua educação básica. Aos 18 anos leu a tradução francesa da principal obra de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, e alguns anos depois, em 1956, graduava-se na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. A formação filosófica acrescentou à sua pesquisa em etologia as preocupações sobre a natureza do comportamento e da mente.
Cunha começou a lecionar em 1958 como professor assistente de psicologia experimental no recém-criado curso de psicologia da USP. Em 1960 e 1961, em um curso na Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, aprofundou seu conhecimento em outra abordagem da psicologia, a Gestalt, que valoriza a compreensão da totalidade como forma de entender os elementos que a constituem.
Ao voltar, decidiu instalar um modelo experimental – o seu predileto, as formigas – para promover reflexões sobre fenômenos psíquicos e comportamentais em animais. Inspirado em um formigueiro artificial do Instituto Biológico, ele montou um sauveiro in vitro no porão de um casarão da USP na alameda Glete, espaço compartilhado por outras atividades práticas do Departamento de Psicologia da USP. “A preocupação de Cunha extrapolou os sauveiros e chegou ao comportamento humano, ao observar as frases que as pessoas escreviam nos para-choques dos caminhões e nas cédulas de dinheiro”, afirma a historiadora Eliane Morelli Abrahão, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela cuida do acervo histórico que documenta a carreira de Cunha, doado por ele ao Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp.
Ainda nos anos 1960, Cunha liderou a construção do laboratório de Psicologia Comparada da USP, que sediou o primeiro programa de pós-graduação em etologia e comportamento animal do Brasil; defendeu sua tese, depois publicada em livro com o título Explorações no mundo psicológico das formigas (Ática, 1980); e começou a orientar os primeiros alunos de pós-graduação em comportamento animal.
“No treinamento em observação do comportamento animal, ele nos incentivava a anotar tudo minuciosamente”, avalia uma de suas primeiras alunas, a bióloga Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, professora emérita do IB-USP, especialista em abelhas. “A outra disciplina da época que focalizava a etologia na USP era ministrada no Departamento de Zoologia do IB-USP por Paulo Nogueira-Neto. As abordagens dos estudos de comportamento seguiram caminhos diferentes com a chegada da Sociobiologia em 1975, mas, mesmo assim, o que aprendi com Walter Hugo Cunha foi sempre muito relevante para mim.”
No curso de observação de comportamento animal, havia um formigueiro em uma estrutura de vidro transparente em um dos prédios do IP-USP, recorda-se a psicóloga Deisy das Graças de Souza, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), aluna de pós-graduação de Cunha nos anos 1970: “Fiquei fascinada. Víamos as pupas [estágio intermediário entre a larva e o adulto] sendo alimentadas e as formigas cortando folhas, carregando-as para o formigueiro”. Segundo ela, Cunha era “afável e acolhedor, mas não dava respostas prontas”. “Os comentários dele sobre nossas anotações ajudavam a melhorar as observações e tornar mais precisas as descrições. Às vezes, o comentário não passava de uma pergunta simples, mas instigante, que fazia pensar e buscar a solução.”
No início, outros professores do IP desconsideravam a etologia e apresentavam os formigueiros de laboratório aos colegas estrangeiros como algo pitoresco. “Muitos questionavam que o estudo de um modelo animal aparentemente simples era e ainda é importante para investigar processos fundamentais em sistemas biológicos, incluindo comportamentos humanos”, comenta Xavier.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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