Este trabalho apresenta e discute, na primeira parte, a importância, o valor e a eficácia da noção de processo como instrumento de representação da realidade; na segunda parte, apresentam-se os ambientes computacionais que tornam possível lidar-se com o processo, mediante simulação. Em termos tecnológicos, trata-se de uma mudança radical na engenharia de software, que abre mão de construir relações entre funções, de caráter fixista, para ceder lugar a interações entre processos, de caráter contextual.
Cada processo, por definição singular, não é apenas uma máquina que muda de estado, mas é também uma máquina que muda o contexto em que se concebem e operam as máquinas. Não são apenas as funções que “interagem”, mas é também o resultado das interações que muda as propriedades das funções ao tempo que estas interagem. Na aprendizagem, o aprendiz, a cada novo módulo de aprendizagem, muda o modo de aprender, obrigando o especialista a refazer a hierarquia de seus módulos de aprendizagem, para adequá-los ao contexto do aprendizado em mudança recorrente.
O novo modo como se desenham os processos e se operam os ambientes computacionais responde à necessidade de se trabalhar em sincronia com a realidade, que aqui se concebe como um estado de mudança, ou seja, como processo. Deixa-se de lado, pois, por inadequado, o modelo de estrutura e função e os seus corolários, entre os quais o caráter discreto da função e o caráter sequencial das operações; o seu caráter relacional, porém não interativo, de contato e não de contágio; a ilusão do controle da realidade, da eliminação do risco, da eliminação da incerteza e o da pretensão de completude. Os ganhos compensadores, resultantes do reconhecimento do caráter irremovível do risco (ainda que se possa em parte enxergá-lo), da redução da incerteza e da incompletude, serão apresentados no decorrer deste trabalho.
O reconhecimento da realidade como estado de mudança é um postulado de caráter geral, epistemológico, que remete às origens da reflexão filosófica na Grécia Antiga, período em que o pensamento ganha autonomia, ao se dissociar do mito. Trata-se da ideia do devir, metamorfose, ou transformação recorrente.
Indissociável da ideia do devir está o logos (a palavra), por meio do qual o devir se expressa como sentido (semântico) e se constitui como saber. Como resultado de uma perversão histórica, involuntária, o termo logos, que em grego enfeixa o sentido do conjunto dos atributos humanos sem hierarquizá-los (intuição, razão, sentimento, emoção, ética, estética), em razão da ausência de termo correspondente em latim foi traduzido por “razão”; e, a partir de então, a razão converteu-se, no pensamento ocidental, como o primeiro dentre os atributos humanos. Obviamente, há que se buscar motivos históricos convergentes para se compreender o impacto decisivo de tamanho “equívoco” na história intelectual do Ocidente. Tanto mais que, estranhamente, o “equívoco” não se registra no pensamento oriental, e não será na ausência de termo correspondente na tradução chinesa que se poderia explicar a diferença entre ambas as visões de mundo, entre racionalidade e processo, como noções contrapostas. (Observe-se que processo não se opõe a racionalidade, ao contrário; o processo inclui, sem hierarquizar, a racionalidade ao lado dos demais atributos humanos)
Mas é indiscutível que, não estando os atributos humanos hierarquizados no Oriente, prevalece ainda hoje na visão do sábio chinês a ideia de processo (no Tao, por exemplo), como instrumento de representação da realidade, que se sobrepõe às modalidades concorrentes de estrutura/função e sistema, dominantes no pensamento ocidental; não, porém, de maneira absoluta, pois são muitos os gênios do Ocidente que erigem a sua visão de mundo sobre a noção de processo. Pense-se, por exemplo, em Espinosa, Hegel, Marx, Nietzsche e Freud.
Com a recuperação da noção de processo e a destituição da hierarquia entre os atributos humanos, removem-se os obstáculos antepostos pelos modelos funcionalistas, crescentemente insatisfatórios. “Os paradigmas da racionalidade (concebida de modo excludente, observação minha) são superados não porque explicam cada vez menos, mas porque explicam cada vez mais, até chegarem a um ponto em que explicam tudo”, observa o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins.
O caráter de mais intensa aderência à realidade, aportado pela visão de processo, deve-se fundamentalmente ao fato de permitir o restabelecimento da ideia originária do logos, ou seja, de conflito e de ambiguidade, ou inconsistência, como constituintes intrínsecos da realidade. Removê-los é perder-se no delírio da racionalidade. “El sueño de la razón produce monstruos”, observou Francisco de Goya.
Assim, torna-se possível lidar com a realidade em estado de mudança, ou com a coexistência num mesmo contexto das dimensões opostas da continuidade e da descontinuidade, do finito e do infinito, do uno e do múltiplo, da unidade e da diversidade, do analógico e do digital, da estabilidade e da mudança. Isso é o que vem a ser complexidade.
Na primeira parte, sob minha responsabilidade, evocam-se alguns tópicos associados à noção de processo, em contraposição à interpretação da realidade como estrutura/função e sistema, no empenho, se bem-sucedido, de facilitar a compreensão da segunda parte, sob a responsabilidade do professor Fuad Gattaz Sobrinho, sobre a noção de processo e a apresentação dos ambientes computacionais de sua autoria.
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