É possível aproximar, de forma coerente, formas de conhecimentos tradicionais com um naturalismo aberto? Quando falamos de conhecimento tradicional, as categorizações que tratam daquilo que alguns acadêmicos chamam de narrativas mitológicas em separação com as descrições empírico-racionalizadas, não se apresentam de forma muito clara, distinta e delineada. Vários autores (MOREIRA-DOS-SANTOS; SANTOS 2022; LIN 2020; CHATTERJEE 2017; EKANOLA 2006; VIVEIROS DE CASTRO 1998) têm chamado atenção para os elementos naturalistas presentes nas cosmopercepções dos povos tradicionais. Tais povos desenvolveram suas próprias tradições de investigação de maneira a ordenar suas experiências no mundo de forma coletivizada, dinâmica (com suas trocas simbólicas, com negociações políticas, não livre de tensões) e ritualística (com suas memórias bioculturais). As relações sociais constituídas pela rede de atores dentro do domínio ontológico de cada etnia e comunidade é o meio que subdetermina as posturas naturalistas frente à totalidade, ambiente ou território. Assim, os domínios da existência são fluidos (perspectivismo ameríndio, por exemplo), de modo que subsistência, elã social e valores ancestrais podem jogar um papel muito mais preponderante do que os valores que regem as experiências normatizadoras dentro da modernidade iluminista.
Podemos, de fato, então, assumir um naturalismo mais aberto (DE CARO & MACARTHUR 2010; DEWEY 1981) de modo que acolha outras formas de experiências organizadas coletivamente, mesmo não sendo consideradas científicas? Defenderemos nesta apresentação que sim.
O projeto iluminista da modernidade dicotomizou os saberes entre, aqueles que partem de uma tradição ou semelhança familiar (WITTGENSTEIN 2015) com as tradições naturalistas cientificistas, e aqueles avaliados como não científicos, ou pior, anticientíficos. Este projeto aprofundou-se quando estabeleceu as ciências como o campo da confiabilidade única, absoluta e universal. Assim, amalgamou-se uma série de saberes e práticas tradicionais no campo da impossibilidade epistêmica ao se construir um monólito metateórico que se tornou um cânone analítico com os escritos kantianos, em meados do século XIX. Hoje com a pluralidade das escolas filosóficas contemporâneas e a emergência das formas de vida das periferias geopolíticas para se imporem no campo político das ágoras e das urbes, formas não cientificistas de naturalismo e os conhecimentos tradicionais acompanham tal insubordinação. Os movimentos anticoloniais, a antropologia e as sociologias das ausências exerceram um papel central neste processo.
Por fim, propomos um olhar metateórico a partir dos conceitos, "materialismo" e "alienação" (WILLIAMS 2011; CRISÓSTOMO DE SOUZA 2016 e 2023; ALCOFF 2016) como base de construção de epistemologias e naturalismos engajados que apontem para as diferentes formas (autônomos em relação ao processo de produção e validação científica, porém que a considere dialogicamente e não de forma excludente) de produção para a subsistência e resistência. Tais subsistências e resistências balizadas por uma ampla gama de mediações nas relações sociais e territoriais para além do humano (HARAWAY 2009) cada uma com sua própria historicidade. Assim construiremos um caminho intercultural possível para uma democracia naturalizada, pluricultural e laica.
Palavras-chave: Naturalismos, Epistemologia política, Memória biocultural, Alienação, Conhecimentos Tradicionais.
Referências Bibliográficas
ALCOFF, L. Uma epistemologia para a próxima revolução. Sociedade e Estado. Brasília, n. 1, v. 31, jan./abr., 2016.
CHATTERJEE, A. Naturalism in Classical Indian Philosophy. In Edward N. ZALTA (Ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (2017.), Available on: https://plato.stanford.edu/archives/win2017/entries/naturalism-india/
CRISOSTOMO DE SOUZA, J. (2023). Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira. TRANS/FORM/AÇÃO: Revista De Filosofia, 46, 301–338. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2023.v46esp1.p301 Acesso em: 5 de julho de 2023
CRISOSTOMO DE SOUZA, J. O mundo bem nosso: antirrepresentacionismo poiético-pragmático, não linguístico. Cognitio: Revista de Filosofia, 16(2), 335-360, 2016. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/27770 Acesso em: 3 de dezembro de 2022
DE CARO, M., & MACARTHUR, D. Introduction: Science, Naturalism, and the Problem of Normativity. M. In DE CARO and D. MACARTHUR, (Eds.). Naturalism and Normativity. New York, NY: Columbia University Press, 2010, 1–22.
DEWEY, J. [1925]. Experience and Nature. In: BOYDSTON, J. A. (ed.), John Dewey: The Later Works, 1925 – 1953: Vol. 1. Carbondale: Southern Illinois University Press, 1981.
EKANOLA, A. A Naturalistic Interpretation of the Yoruba Concepts of Ori. Philosophia Africana, 9(1), 2006, 41-52. Available on: https://www.jstor.org/stable/10.5325/philafri.9.1.0041
HARAWAY, D. “Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In Tadeu, T. (org). Antropologia do Ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 2ª edição.
LIN, C. T. Could the Buddha Have Been a Naturalist? SOPHIA, 59, 2020, 437–456. https://doi.org/10.1007/s11841-019-00734-y
MOREIRA-DOS-SANTOS, F.; SANTOS, A. BISPO DOS ANJOS. Construção da Natureza: narrativas mitológicas de base naturalista em comunidades Iorubás no Brasil. Revista Perspectiva Filosófica, v. 49, p. 544, 2022.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Cosmological deixis and Amerindian Perspectivism. Journal of the Royal Anthropological Institute 4, 1998, 469-88.
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WITTGENSTEIN, L [1953]. Investigações Filosóficas, in Tratado Lógico-Filosófico/Investigações Filosóficas, (Trad. M.S. Lourenço), 6ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2015.
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