Coleção CLE: Vol. 82 - I SOEITXAWE: Congresso Internacional de Pesquisa Científica na Amazônia
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Título: I SOEITXAWE: Congresso Internacional de Pesquisa Científica na Amazônia 

Editores convidados: Cláudia Marinho Wanderley, Kachia Téchio, Guilherme dos Santos Carneiro e Vinícius Ferreira Costa 

ISBN 978-85-86497-33-9 (e-book), CLE/Unicamp, 1ª Edição (2017)

ISBN 978-85-86497-34-6, CLE/Unicamp, 1ª Edição (2017), 794p

disponível em https://www.cle.unicamp.br/ebooks/index.php/publicacoes/catalog/book/6

Prefácio

“O melhor que o mundo tem é a diversidade de mundos que contém” (Eduardo Galeano)

Como olhamos o outro (e a nós mesmos) no complexo emaranhado da vida? A reflexão sobre essa questão brotou e cresceu rapidamente à medida que íamos lendo a profusão dos textos deste livro e tentando descobrir um caminho de conexão entre eles. O que dizer das inúmeras visões de mundo nele impressas? Não elaboramos este prefácio como especialistas, mas apenas como apaixonadas pelo tema da valorização da diversidade cultural que, no fundo, expressa o desejo de uma sociedade melhor.

Seguindo as trilhas de Boaventura de Souza Santos, reconhecemos que a forma dominante de saber, hegemônica na sociedade ocidental contemporânea, repousa em uma linha abissal, “invisível”, que estabelece uma distinção entre colonizadores e colonizados. De um lado dessa linha encontram-se os saberes canonizados do norte ocidental, que determinam o que é científico/não científico, verdadeiro/falso, aceitável/não aceitável enquanto programas de pesquisa. Do outro lado dessa linha abissal se amontanham as supostas “especulações” populares, as opiniões do senso comum, as superstições dos camponeses, indígenas e grande parte da humanidade contra-hegemônica, destituída de direitos fundamentais, sem o reconhecimento de suas formas de saberes.

Em partes significativas do mundo, a linha abissal já não se impõe em seu pleno vigor; ela está sendo questionada, não apenas por filósofos e cientistas, mas por cidadãos vivendo na era pós-colonizadora, que reconhecem o fundamental valor da diversidade de saberes para a própria manutenção da existência humana. Entendemos que a presente obra, organizada por Claudia Marinho Wanderley, Kachia Téchio, Guilherme Carneiro e Vinícius Ferreira, retrata uma valiosa contribuição para esse questionamento. Na Era do pós-tudo, já não podemos ignorar a visão ecológica de formas alternativas de vida dos povos da floresta, seus saberes que preservam o meio ambiente, seu conhecimento milenar, por exemplo de ervas medicinais para curas de doenças que não encontram respaldo na medicina dominante. Também não podemos deixar de refletir, com apreço, sobre o ritmo de vida dos povos da floresta que contrasta com o ritmo frenético e doentio do “homo-celulare“. Descobrimos que a presente coletânea pode ser lida em tópicos que se delineiam, em diversas ordenações, através dos vários temas apresentados no I SOEITXAWE Congresso Internacional de Pesquisa Científica na Amazônia CT Paiter Suruí, Cacoal, Rondônia-Brasil, que ocorreu em maio de 2015. O termo Soeitxawe, significa, na língua tupi mondé suruí, conhecimento. Esse congresso, de que tivemos a sorte de participar, expressou um dinâmico e criativo movimento auto-organizado de amantes do conhecimento, que se expressa através da valorização da diversidade cultural, possibilitando um fértil diálogo entre povos da floresta, intelectuais nacionais e internacionais, jornalistas da cidade de Cacoal e membros da comunidade em geral.

Iniciamos a nossa leitura pelo instigante relato da antropóloga Kachia Téchio, pesquisadora do grupo de estudos Multilinguismo e Multiculturalismo no Mundo Digital , coordenado pela pesquisadora Claudia Wanderley na Unicamp. Kachia nos brinda com o texto: Apresentação e breve narrativa do I Soeitxawe, no qual descreve seus primeiros contatos com o chefe Almir Surui, líder do Povo Paiter Surui, e sua experiência na organização do evento com o Povo Paiter Surui e a incansável Claudia Wanderley, encontro esse que resultou, entre outros, na elaboração da presente obra.

Impossíveln deixar de compartilhar com Kachia uma imensa admiração pelos Paiter Surui que, em suas palavras: é um povo extremamente generoso, receptivo e coletivo. Ela nos conta que os temas do evento escolhidos pelos indígenas foram: saúde, educação, tecnologia e ambiente, temas esses que “... curiosamente formaram a palavra SETA, um sinônimo para flecha, e a proposta divertida divulgada nas conversas entre os indígenas era de atingir a comunidade científica com seus conhecimentos tradicionais.” A SETA (Saúde, Educação, Tecnologia e Ambiente) se expressa dinamicamente em grande parte dos capítulos do livro, tornando impraticável a descrição de todos eles neste limitado espaço. De modo a dar uma pequena amostra da rica variedade de textos aqui presentes, iniciamos o nosso percurso da SETA seguindo a perspectiva geral bem elaborada por Rubens Naraikoe Surui, no artigo Labiway EY SAD- Sistema de Governança Paiter Surui. Nesse artigo, o leitor encontrará um pouco da realidade vivenciada pelo povo Surui nos âmbitos da saúde, educação, tecnologia e ambiente. O relato narrado pelo olhar do estudioso de Direito desvela uma corajosa e emocionante história de luta para a manutenção da existência e autonomia de seu povo.

No que diz respeito à Saúde, dentre as diversas perspectivas proporcionadas nesta obra, Wendril da Cruz Tomé apresentainteressantes resultados de uma pesquisa sobre a concepção de saúde dos indígenas da etnia Gavião. Em seu texto: Cultura do povo indígena Gavião e como tratam a respeito da saúde, Wendril reúne aspectos da entrevista com o cacique  Catarino, da Aldeia Ikolen, em Ji-Paraná, Rondônia, sobre formas de vida fundamentadas em hábitos de alimentação não industrializada e em recursos naturais de cura para doenças.

Quanto ao tema da Educação, novamente a SETA percorre grande parte dos capítulos, mas a ênfase é dada a esse tema por Claudia Wanderley e Beatriz Raposo no belo texto: Lógicas e Epistemologias Locais: encontro com os Paiter Suruí. O leitor atento descobrirá nesse texto uma reflexão sobre a fertilidade dos processos de auto-organização no acesso democrático à produção do conhecimento e no reconhecimento respeitoso de saberes de diversos grupos sociais, elementos esses que, nas palavras da autora, “... são necessários para quem deseja trabalhar coletiva e intelectualmente em prol do bem comum e de uma cultura de paz”. Nesse mesmo contexto, Simone Gibran Nogueira, no capítulo intitulado Educação das Relações Étnico-Raciais, discute a situação de afrodescendentes brasileiros, criticando a perspectiva eurocêntrica colonial vigente em nossa sociedade. Ela ressalta a importância de se repensar a educação das relações étnico-raciais, de modo a, não apenas respeitar, mas, valorizar a pluralidade e a diversidade das culturas existentes na nação brasileira.

O tema da Tecnologia é representado principalmente no texto de Claudia Ribeiro Pereira Nunes: O plano de sustentabilidade socioeconômica e cultural do povo Paiter Suruí na floresta amazônica e sua inserção tecnológica. Nesse capítulo, a autora busca compreender o plano de sustentabilidade, para os próximos 50 anos, do povo Paiter Suruí no contexto da Maria Eunice Quilici Gonzalez e Itala M. Loffredo D’ Ottaviano globalização. O leitor compreenderá, na leitura do texto, os seguintes objetivos específicos da pesquisa em questão, que se propõe a: (i) diagnosticar os efeitos da inovação tecnológica inserida no referido plano, bem como (ii) descrever a efetiva contribuição do plano para o desenvolvimento sustentável do povo Paiter Suruí e a sua visibilidade internacional.

Finalmente, a SETA percorre amplamente o tema do Ambiente, com ênfase na fundamental importância da manutenção das reservas florestais, das nascentes, do reflorestamento sustentável e do respeito aos povos da floresta. Com essa preocupação, encontramos, entre outros, o texto: Desenvolvimento sustentável: Uma análise dos mecanismos e das práticas adotadas por uma empresa rural situada no munícipio de Vilhena-RO no cultivo da Silvicultura para fins comerciais, elaborado por Vanessa Rodrigues do Prado Morais; que apresenta e discute o projeto de reflorestamento, para fins comerciais, no estado de Rondônia. O tema da água é também investigado por Naara Ferreira Carvalho de Souza no texto: Avaliação de impacto ambiental das nascentes urbanas de Ji-Paraná/RO. A autora discute problemas ambientais decorrentes da urbanização acelerada que afeta recursos hídricos de nascentes localizadas no município de Ji-Paraná, RO.

Ainda no contexto ambiental, Yasmin Paiva Correa investiga, no capítulo intitulado Programa de aquisição de alimentos (PAA: a percepção de trabalhadores rurais do município de São Felipe do Oeste – RO, o fortalecimento da agricultura familiar, após o ingresso de agricultores no PAA, bem como as dificuldades enfrentadas por esses trabalhadores. A amostra de textos acima indicados representa apenas um pequeno sinal da riqueza do volume aqui apresentado. Convidamos o leitor a percorrer a obra elaborando sua própria visão dos capítulos, com uma mente aberta para a compreensão da fertilidade inerente à diversidade cultural.

Não poderíamos encerrar este prefácio sem destacar o papel fundamental do cacique, batalhador incansável, Almir Suruí, que recebeu o título de Doutor Honoris causa pela Universidade Federal de Rondônia, na organização do evento e no encaminhamento dos planos de sustentabilidade de seu povo. O leitor poderá apreciar a tentativa do chefe Almir de dialogar com membros da sociedade nacional e internacional que se abrem para um diálogo franco e respeitosos dos vários saberes que começam a ter voz no século XXI. Em seu recente contato com a nossa civilização, Almir reconhece que “... cada povo tem seus próprios ideais, seus próprios princípios, sua visão, sua missão de lutar para manter sua autonomia, sua cultura, sua religião, sua história como povo.” Em seu texto, ele ressalta que esse reconhecimento o levou a refletir sobre o valor da vida das sociedades “que precisam ser respeitadas e valorizadas, dentro do princípio de mantê-lo como povo.

...com essa visão eu luto bastante para que eu possa então fazer minha parte como um dos líderes do povo Suruí”. Acreditamos que a ecologia dos saberes que encontramos nesta obra vem trazer um raio de luz na trilha da monocultura das mentes que se instaurou em nossa civilização, desvelando um pouco da sociologia das ausências inseridas no silêncio das culturas marcadas pela exclusão. A poesia abaixo, de Oswald de Andrade, talvez expresse com elegância, propriedade e senso de humor as complexas nuances da dinâmica história da colonização de nosso país, que fortaleceram os elos da colonização no estabelecimento da linha abissal que, para a felicidade de muitos, já mostra sinais de mudanças.

 

"Erro de português" (de Oswald de Andrade)

"Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena! Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português"

Maria Eunice Quilici Gonzalez
Itala M. Loffredo D’ Ottaviano

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