Razão e Afetividade: o pensamento de Lucien Lévy-Bruhl
Sinopse
Razão e Afetividade: O Pensamento de Lucien LévyBruhl (digital)
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“Este pequeno livro sobre o pensamento de Lucien Lévy-Bruhl é o resultado de um programa de estudo mais amplo destinado a compreender um dos períodos mais férteis da reflexão antropológica, aquele que se situa entre as duas últimas décadas do século passado e os primeiros três decênios do século XX. No que diz respeito à antropologia social, pode-se dizer, sem exagero, que foi no século XIX que se assentaram as bases da disciplina. Um século, entretanto, que não se esgotou no calendário gregoriano, prolongando-se até a primeira guerra mundial, enquanto atmosfera intelectual do Geist europeu — como historiadores assim já diagnosticaram. O fascinante espírito oitocentista e, particularmente, o seu fin de siécle, abarca não somente a europa continental, mas também a Inglaterra e os Estados Unidos, centros de constituição e de irradiação da antropologia social e cultural, na forma como ela se desenvolveu desde então e existe, hoje, em sua plena maturidade. Procurei mostrar isso em meu Sobre o Pensamento Antropológico (Edições Tempo Brasileiro, 1988), recorrendo à construção de um modelo que denominei de “matriz disciplinar” da antropologia. E ainda, dentro desse mesmo programa de estudo que, a rigor, começa em fins dos anos 70, além do livro mencionado, tive a oportunidade de escrever dois pequenos ensaios, um sobre M. Mauss e, outro, sobre W.H.R. Rivers, como introduções a suas respectivas coletâneas de textos (Marcel Mauss, Editora Ática, 1979; e A Antropologia de Rivers, Editora da Unicamp, 1991).
À idéia que presidiu a proposta desse programa, foi a de introduzir no horizonte dos estudantes e estudiosos da disciplina não só o gosto pela reflexão sobre a história da antropologia social, como também o disciplinamento do estudo dessa mesma história, orientandoo para o registro articulado — sempre que possível — de “fatos datados” com “fatos epistemológicos”. Com essa intenção e com a colaboração de dois colegas do Curso de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, os Professores Mariza Corrêa e Guillermo R. Ruben, criamos a Área Temática “Itinerários Intelectuais e Etnografia do Saber” no âmbito do Curso. Mas é necessário que se diga que em nenhum momento se pensou em substituir o exercício da pesquisa antropológica tradicional que fez da disciplina o que ela é, a saber, a investigação da realidade sócio-cultural, manifestada em diferentes modalidades de existência, que vão dos povos indígenas às classes rurais ou urbanas da sociedade global. Portanto, a ênfase pretendida por esse reduzido grupo de antropólogos (aos quais se associam colegas de outros departamentos da Unicamp e de outras universidades, além de nossos próprios estudantes) recai na idéia de que nenhuma disciplina pode assumir plenamente sua identidade sem refletir sobre sua própria origem, tanto quanto sobre o exercício atual de seu métier, questionando-a assim em termos de seus paradigmas e de sua prática. Estranhar a própria disciplina é a mensagem maior das pesquisas que vêm tendo lugar naquela Área Temática. Nesse sentido, vários trabalhos de colegas e de alunos estão em curso, não cabendo aqui mencioná-los, uma vez que se espera venham a ser divulgados proximamente.
Voltando ao projeto específico relativo a Lucien Lévy-Bruhl, que teve como seu primeiro resultado este livro, gostaria de acrescentar de uma maneira muito sintética alguns esclarecimentos. Primeiro sobre o porquê da escolha desse autor; depois sobre a metodologia adotada. Nascido em meados do século XIX e tendo produzido uma obra que pode ser datada de 1884 com sua Tese doutoral, indo até o seu encerramento nos anos 30 do presente século com seus Carnets, publicados postumamente, Lévy-Bruhl é duplamente um homem de transição. Não apenas um transeunte de um século ao outro, mas também de uma disciplina — a filosofia - a outra - a antropologia. É essa interface, que une as duas disciplinas, o foco privilegiado deste ensaio que procura acompanhar as vicissitudes de um pensamento, apreendendo-o em pleno exercício. ÀAssim, podemos ver Lévy-Bruhl em três momentos de seu itinerário intelectual. Só que em lugar de procurar periodizá-lo, atendo-me prioritariamente à sua história externa, procurei registrar esses momentos em sua internalidade, graças à visualização da natureza e da dinâmica de sua argumentação. Pode-se verificar, então, o processo de elaboração de três argumentos — o “filosófico”, o “sociológico” e o “etnológico”, como assim os denominei -, produzidos respectivamente em três momentos históricos sucessivos. Embora sejam argumentos praticamente datados, o exame que sobre eles foi realizado, concentrou-se na esfera dos “fatos epistemológicos” - na acepção que lhes dá Granger.
Nesse sentido, a pesquisa, embora inspirada numa modalidade de etnografia da ciência ou do saber antropológico, não pretendeu realizar integralmente tal modalidade de investigação, posto que não me foi possível estendê-la a Paris (como desejava inicialmente), onde se tentaria entrevistar alguns remanescentes, seus contemporâneos - especialmente ex-alunos ou testemunhas ainda vivas dos últimos anos de Lévy-Bruhl — ou vasculhar instituições e arquivos, como uma desejável busca de “fatos datados” e inéditos. Por isso, a etnografia originalmente imaginada teve de se limitar a investigar a sua dimensão meta-disciplinar — nos termos em que pude defini-la em meu “A Vocação Meta-Disciplinar da Etnografia da Ciência”, último capítulo do livro acima mencionado. Conto com que isso não signifique um empobrecimento irreparável da pesquisa, porém apenas uma reformulação de seu alcance, agora mais restrito ao mundo das idéias, ou ao sistema conceitual em cujo interior se movimentou o pensamento de Lévy-Bruhl. À consequência mais imediata disso foi abdicar de uma intenção de escrever uma monografia, para — agora — substituí-la pelo gênero ensaístico. Este ensaio possui, por conseguinte, clara correspondência com a História das Idéias e com a Epistemologia das Ciências Humanas, ademais de se inserir naturalmente na Listória da Antropologia. No entanto, quero crer que ele tenha encontrado um enfoque próprio, através do qual menos se atenta para as teorias elaboradas pelo autor, mais para a compreensão do espírito inscrito em uma obra e para a elucidação do pensamento que a criou.
A estrutura do ensaio foi construída de maneira a proporcionar ao leitor um quadro dinâmico no interior do qual se movimenta o pensamento de LévyBruhl. Depois de uma Introdução (cap. 1), em que se trata de delinear a gênese desse pensamento, indicando filósofos que se constituíram em marcos importantes na formação de nosso autor, o ensaio se divide em duas partes, cada uma delas sub-dividida em dois capítulos. Em sua primeira parte, “A Questão Moral”, procura-se examinar o empenho de Lévy-Bruhl em clarificar a noção de responsabilidade (cap. 2), com a elaboração de um argumento filosófico — que rejeita de um lado o formalismo metafísico, de outro o naturalismo e o objetivismo, em cujos termos essa questão se via sempre reduzida. Em seguida, procura-se mostrar como Lévy-Bruhl passa a submeter a questão moral a um escrutínio sociológico (cap. 3), mostrando que somente através de uma “ciência dos costumes” é que tal questão poderia ser frutiferamente examinada; é quando a influência da sociologia durkheimiana mais se introduz no teor de sua argumentação, ainda que não lhe tire originalidade na fundamentação de uma nova ciência do “fato moral”. Apreciado o enfrentamento do autor com a questão moral, por ele focalizada sucessivamente por duas perspectivas, o ensaio passa a examinar a mudança de estratégia de Lévy-Bruhl para dar conta, agora, da questão cognitiva ou, em outras palavras, da natureza do conhecimento e de sua lógica observáveis em populações “primitivas”. É quando Lévy-Bruhl passa a trabalhar com dados etnográficos, se bem que sempre mantendo como contra-ponto a mentalidade européia. É a parte certamente mais conhecida de sua obra, pois é o momento em que elabora o conceito de “mentalidade primitiva” ou “mentalidade prelógica”, responsável por tantos equívocos na leitura de seus escritos etnológicos. Dois capítulos dividem essa parte: um (cap. 4) em que são apreciadas as idéias que desenvolveu em seus três primeiros livros (de 1910 a 1927) dedicados ao tema; outro (cap. 5), devotado aos três seguintes (de 1931 a 1938), com a inclusão ainda de seus Carnets (1949). Nesses dois capítulos, procurouse reconstruir o seu argumento etnológico no sentido de propiciar ao leitor uma visão sobre um pensamento, cuja evolução, não obstante, não quebrou sua continuidade. Como conclusão do ensaio (cap. 6), procurei deixar claro que Lévy-Bruhl soube sempre preservar o espaço da razão diante das pressões da afetividade, uma vez que em sua diligente aplicação em encontrar um lugar para esta na constituição da mentalidade dita primitiva, nem por isso subtraiu daquela sua função lógica, desde que terminaria por reconhecer — como fecho de ouro de sua obra - a unidade da razão sobre a multiplicidade de suas manifestações. Dir-se-ia que mesmo nesse “selvagem jacobiniano” que Lévy-Bruhl inventou, a razão soube sobreviver ao seu salto mortal”.
Roberto Cardoso de Oliveira
Volume 8 – 1991
ISSN: 0103-3247
Primeira edição, 1991
Índice para catálogo sistemático
- Antropologia social: História 301.09
OBS. Nascido em meados do século XIX e tendo produzido uma obra que pode ser datada de 1884, com sua tese doutoral indo até seu encerramento no final dos anos 30 deste século, Lucien Lévy-Bruhl é duplamente um homem de transição. O presente texto, construído segundo uma ótica históricoepistemológica, oferece ao leitor a oportunidade de acompanhar um itinerário intelectual extremamente rico, através do qual fica evidenciada a dinâmica da argumentação de um pensador em busca de um novo caminho que dê conta da natureza humana.